Sunday, August 06, 2006

Toupeira e Porco-Espinho

Nasci toupeira. E me entristeço de saber que quando as pessoas querem dizer que alguém é pouco esperto chamam-na toupeira. Pois não é verdade que somos pouco espertas. Trata-se, sim, de um problema de olhos. Não enxergamos bem. Não posso negar. É um jeito meio vesgo de ser, uma maneira hipermetrópica de vida. E aos outros é muito difícil que não vejamos as coisas como eles, então somos, a seus olhos, pouco inteligentes. É verdade que esse olhar meio besta cansa um pouco, e que dá trabalho explicar aos outros minha realidade distorcida. Então resolvi num dia de cansaço me fingir de porco-espinho. Minha mãe logo avisou que não daria certo, que o porco-espinho é um bicho que vive só, não por opção, mas por uma completa inabilidade de lidar com o próximo. Não acreditei, e insisti. Me parecia que me fingir de porco-espinho me pouparia uma série de aborrecimentos. Eles se defendem melhor, são mais rápidos e ninguém abusa muito da sua boa vontade. Foi o que pensei... com meu jeito vesgo de pensar. Segui declarando que sou porco-espinho, e apesar de não ter espinhos os que me cercam acreditam no que eu digo, e até enxergam em mim os espinhos que não tenho. É engraçado, depois são as toupeiras que enxergam mal... Mas ando cansada da fantasia, porque na verdade não passei a enxergar melhor, mas ganhei a inabilidade com o próximo. Então além da vida míope e embaçada agora não consigo dividir. Parece um enorme castigo por eu fingir tanto ser algo que não sou. Também não posso ser injusta... essa inabilidade foi aprendida com muito custo, não posso desprezá-la... é que vi outro dia uma toupeira que finge ser porco-espinho... e achei tão engraçado o esforço que ela faz pra se esquivar, ser forte, não se entregar... que me senti tomada por uma afeição que me desconcertou... há tanto que desaprendi o afeto! E o bobo que me viu como porco-espinho, sendo toupeira, ou o contrário, não estou bem certa, me desarmou, e fiquei assim, meio nua... sem os espinhos que eu já não tinha. E às vezes acho lindo isso de estar sem roupa, às vezes acho odioso. Ainda sou bem inábil pra lidar com qualquer outro. Particularmente com o igual disfarçado de igual, mas diferente. Mas tenho duas imensas alegrias... a de ter essa toupeira com espinhos imaginários perto e a de me redescobrir toupeira, com meu jeito míope de ser, que foge do sol de vez em quando, mas que pode deitar num colo sem espetar. Me falta conseguir dizer ao outro que meus espinhos são miopia... nada mais.

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