Wednesday, September 27, 2006

23 de Maio

O asfalto é fofo. Foi a sensação que tive na última vez em que atravessei a 23 de maio. Fazia um frio desgraçado e eu estava pra lá de atrasada. Desci correndo do ônibus e atravessei. Eram três da tarde. Fazia frio. E então o asfalto. Muito perto. A cabeça aberta como abóbora madura, foi esse o comentário que ouvi de alguém que parou para ajudar. Me ajudar? A minha cabeça. Abóbora madura. No asfalto fofo. Nunca soube da vida dos poros. Naquele momento todos eles gritaram. Bilhões de bocas gritando em meu corpo a dor. Cada um com uma dor individual. Gritando juntos. Vi num instante meu corpo na horizontal, muito acima do chão, os tetos dos carros, o céu se aproximando, depois se afastando lentamente, o vento nas minhas costas, pensei que aquele vento poderia me lançar a outros lugares, que eu voaria por tempos-espaços afora, mas não. A voz do homem que gritava e o baque surdo do meu corpo no chão, a abóbora-cabeça que se acomodava delicadamente no asfalto, o líquido morno que empoçava embaixo do meu corpo e a falta do ar, como se, de repente, minhas narinas ganhassem autonomia e se recusassem a receber o ar, mandando-o ir morar em outro lugar, invadir outro território. Os pulmões se comprimindo. Pensando agora, já não estava mais tão frio. Tentei reconstruir o momento em que me encontrei com o veículo que me lançou ao chão. Atrasada. Mas não olhei para atravessar? Pensei ter olhado. Talvez estivesse distraída. Achei que para me lançar tão alto devia ser um caminhão, tentei olhá-lo, mas meus olhos não se moviam, tudo que eu podia ver era o céu azul, sem nuvens e ouvia umas vozes, que falavam, falavam da demora do socorro, da maneira como me lancei na frente do veículo, de como o homem tentou desviar, eu queria dizer que não tinha visto o carro, mas agora já não sabia, exatamente, não sabia. Talvez eu o tivesse visto e achei que tinha tempo, talvez estivesse cansada da obrigação de estar viva ou apenas, é o mais provável, apenas quisesse ver as coisas de um outro ângulo...

Sunday, September 17, 2006

dia sem pontuação

Um pequeno cálice de cristal onde você deposita seu mais precioso líquido e mal o prova já está no fim nada de grandes goles nenhuma embriaguez tonturas essas coisas que nos levantam e arrastam levemente do chão uma suave perda dos sentidos não nada disso apenas o roçar dos lábios no líquido quente quais eram os lábios os pequenos ou grandes não lembro não sei o gosto mal provado o gozo ausente esquecido meu nome boiando no líquido junto dos teus olhos que na flutuação gritam luzes e não me deixam dormir me iluminam sem paz numa perseguição angustiante eu corro arfando o peito que sobe e desce não adianta subir que não te alcanço sempre mais rápido tão acostumado a fugir intocável perdendo o melhor pequeno cálice transparente se julgando invisível imprevisível tão desprotegido e só doando apenas um roçar de lábios uma gota de si que nem embriaga deixando morto de sede o entorno secando o calor a luz que te atravessa e explode em milhões de cores na parede do quarto escuro de novo eu acordada sempre igual grudada no teto as unhas cravadas no chão cheio de sangue da última briga o cálice no chão a esperança do filho perdida a mão de encontro ao rosto a cabeça na porta as garras nos olhos a mala feita e o homem muito longe o cálice desfeito no trincado do chão.