23 de Maio
O asfalto é fofo. Foi a sensação que tive na última vez em que atravessei a 23 de maio. Fazia um frio desgraçado e eu estava pra lá de atrasada. Desci correndo do ônibus e atravessei. Eram três da tarde. Fazia frio. E então o asfalto. Muito perto. A cabeça aberta como abóbora madura, foi esse o comentário que ouvi de alguém que parou para ajudar. Me ajudar? A minha cabeça. Abóbora madura. No asfalto fofo. Nunca soube da vida dos poros. Naquele momento todos eles gritaram. Bilhões de bocas gritando em meu corpo a dor. Cada um com uma dor individual. Gritando juntos. Vi num instante meu corpo na horizontal, muito acima do chão, os tetos dos carros, o céu se aproximando, depois se afastando lentamente, o vento nas minhas costas, pensei que aquele vento poderia me lançar a outros lugares, que eu voaria por tempos-espaços afora, mas não. A voz do homem que gritava e o baque surdo do meu corpo no chão, a abóbora-cabeça que se acomodava delicadamente no asfalto, o líquido morno que empoçava embaixo do meu corpo e a falta do ar, como se, de repente, minhas narinas ganhassem autonomia e se recusassem a receber o ar, mandando-o ir morar em outro lugar, invadir outro território. Os pulmões se comprimindo. Pensando agora, já não estava mais tão frio. Tentei reconstruir o momento em que me encontrei com o veículo que me lançou ao chão. Atrasada. Mas não olhei para atravessar? Pensei ter olhado. Talvez estivesse distraída. Achei que para me lançar tão alto devia ser um caminhão, tentei olhá-lo, mas meus olhos não se moviam, tudo que eu podia ver era o céu azul, sem nuvens e ouvia umas vozes, que falavam, falavam da demora do socorro, da maneira como me lancei na frente do veículo, de como o homem tentou desviar, eu queria dizer que não tinha visto o carro, mas agora já não sabia, exatamente, não sabia. Talvez eu o tivesse visto e achei que tinha tempo, talvez estivesse cansada da obrigação de estar viva ou apenas, é o mais provável, apenas quisesse ver as coisas de um outro ângulo...
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