Saturday, October 28, 2006

Para não Mais Dividir

Naquele dia ela chegou mais cedo e ele já estava em casa. Ela sorriu. Eles continuavam fazendo as coisas como se estivesse combinado. Depois de tanto tempo. Todo esse tempo. Perguntou se ele já tinha jantado. Respondeu que não. Estava esperando-a. Ainda esperava-a. Ela riu da resposta. Pareceu um pouco dramática. Ele também nunca estava em casa. Foi fazer algo para jantar. Mas o jantar já estava pronto. Ele tinha cozinhado. Ela ficou surpresa, mas não disse nada. Sentou-se com ele e jantou. Tranquila. Depois do jantar, sentaram-se juntos no sofá e ele a abraçou, longamente. Disse que não queria mais dividi-la. Já tinha se esforçado o bastante. Agora bastava. Ela respondeu que ele não a dividia, mas que eles tinham outras coisas, não mais importantes que o outro, nunca, mas também importantes. Ele balançava a cabeça, não era isso. Ele estava sendo claro, por que ela fingia que não estava entendendo? Disse de novo: Agora não mais. Chega. Não quero mais dividi-la. É isso. Não complique. Ela achou romântico, mas ficou um pouco irritada. Onde ele achava que aquela conversa iria chegar? Aconselhou que fossem dormir. Ele concordou. Deitaram-se. Ele a beijou como há muito tempo... ela chorou em silêncio. Ficaram abraçados. Ela disse que o amor devia poder libertar. Que estavam juntos, que ele se acalmasse, desfranzisse a testa. Ele apenas disse: Não. Por agora basta. Quero -a só minha. É tudo. Ela fingiu que não ouviu para não iniciar uma discussão e pegou no sono. O despertador tocou de manhã, ela sempre atrasada. Ele já não estava. Ela se levantou correndo para um banho.
A porta do quarto trancada.

Thursday, October 19, 2006

Nó em pingo d´água

Sentiu o sol forte queimando suas têmporas, pensou: Quanto tempo será que estou aqui? Lembrou-se de ter pegado no sono fazia algum tempo. Abriu os olhos e viu o céu de um azul estonteante, o mar tão estonteante quanto e a areia fina e branca. Viu que ainda estava na praia. Devia ter dormido muito mesmo. Sentiu fome e resolveu ir para casa almoçar. Tentou levantar-se, em vão. Não podia. Havia algo em suas pernas que a impossibilitavam. Tentou olhar para suas pernas, mas aquilo tinha uma cor tão forte que seus olhos demoraram a perceber que aquilo se tratava de um rabo. Rabo? Sim, um rabo de peixe, que brilhava e tinha lindos desenhos. Ficou com uma sensação estranha entre o prazer de ter em si algo tão belo e o medo de ter perdido suas pernas. Pensou então, que podia estar sonhando. Não, não estava. O beliscão que dera em si acabava de confirmar. Era isso, tinha virado uma sereia. Coisa ridícula! Parecia conto de fada. Mas lá estava. Sereia. Será que estava no meio da transformação e viraria toda peixe? Acabaria toda a beleza da coisa, deixar de ser sereia e virar um peixe grande e gordo na areia! Não, parecia que era só o rabo mesmo. Resolveu, então, até por necessidade, pois aquele calor estava matando-a, arrastar-se até o mar. Foi fazendo isso com muito esforço, sentiu os primeiros toques na areia úmida com o prazer que se sente quando os pés nus tocam o chão de uma casa, que é só sua, pela primeira vez. Pensou em tudo que ficaria para trás quando entrasse no mar e de lá não pudesse mais sair. Não lhe pareceu tão mal a troca. Entrou, toda, na água. A sensação era maravilhosa, a água fresca que trazia um imenso alívio. Como podia ter vivido em outro lugar? Tanto tempo sem aquela sensação? Sentiu-se linda. Afinal, era hábil em alguma coisa. Nadava lindamente com seu rabo de peixe. Quis ir ao fundo, conhecer o lugar onde viveria. Foi então que aconteceu. Não podia respirar lá embaixo. Sufocava. Como podia ser? Sereias não respiravam embaixo d’água? Será que era porque ela não havia nascido sereia? Tentou de novo. Não era possível. Se insistisse morreria afogada. Ficou no meio do mar, não podia viver ali, nem fora dali. Não adiantava, não havia nenhum lugar em que ela pudesse viver. Ficou, para sempre, porque as sereias não morrem (ironia do destino?), no meio do caminho. Vivendo entre dois mundos sem pertencer a nenhum.

p.s. o título foi gentilmente cedido pela minha irmã gênio, aquela da torre, então de novo, querida, obrigado... por tudo.