Tuesday, August 29, 2006

Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pensar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

-Ah, como dói viver quando falta a esperança!

Manuel Bandeira

P.S. Os gênios me dóem!

Saturday, August 19, 2006

Confabulando

Chegou morta de fome. Foi pro fogão, cozinhou o pouco que tinha na geladeira e errou. Errou a mão no sal. Errou feio. A pouca comida que tinha ficou intragável. Sem grandes metáforas. Apenas isso. A comida insuportavelmente salgada. Comeu. Assim mesmo. Estava com muita fome, que fazer... Isso não tem nada a ver com a história. Por que isso agora? Não era nada disso. A história não era essa... Talvez a parte do intragável. Nisso era parecido. Enquanto comia o tijolo de sal pensava porque não tinha dito. Por que não tinha dito? Ele estava ali tão perto...tão perto que ela poderia tê-lo matado. Ou lhe acertado um belo soco no nariz. Não seria engraçado? Ela, tão madura, tão compreensiva, amiga, divertida. O parque de diversões de porta sembre aberta, que lhe tivesse jogado a roda gigante na cabeça? Um belo soco no nariz! Ficar admirando o sangue escorrendo... nada de grandes histórias, despedidas, sofrimentos, apenas um soco e um palavrão. Quem sabe assim ele entendesse de fato o tamanho da dor. Do desperdício. Quem sabe não fosse seu maior desejo? Sua grande espera... Alguém que lhe socasse o nariz. Talvez assim parasse com a palhaçada de se esconder atrás do próprio autoconhecimento, do não saber o suficiente. Por quer tinha que saber tanto afinal? Não podia apenas ir ao cinema de mãos dadas? Adormecer em silêncio? Jantar a dois, andar pelas ruas, dar risada? Tudo tem que ser definitivo. Seria tão mais fácil... Seria o que mais fácil?? Não disse porque não tinha mais vontade de insistir. Porque já tinha sido demais. Queria era ter lhe socado o nariz. E perdeu a chance. Ela não era mais fácil. Era mais importante, mais verdadeira, mais alegre. Não mais fácil. O belo rapaz que não sai de trás da vidraça, embaçando tudo. E acha que fica tudo certo. Como ela disse. Tudo certo. Intragável. A vontade de explodir a sala de lágrimas, de gritos, de ódio. Como a Fênix no cinema. Transformar o professor Xavier e todos os seus bonecos em pó. De novo mentiu. Depois passou. Um copo dágua e o sal da comida se foi. Não estava mais com fome. Tudo certo.

Conto de Fada

Eram duas irmãs. Marina e Carolina. Ninguém as pariu. Foram pensadas e delicadamente moldadas por um grande homem que iria querê-las profundamente até o fim de seus dias. E a quem elas não abandonariam, sempre pensaram. Jamais o abandonariam.
Uma teve seus cabelos moldados no cobre e tinha os olhos da mais bela manhã de verão. A outra tinha nos cabelos e olhos todo o breu da mais desoladora noite.
Forma as duas colocadas numa torre. Onde nada lhes faltava. Só não tinham espelhos nem a chave da porta. Não parece essencial? Marina fora toda vestida de veludo. E à Carolina foi dada uma completa intolerância a tal tecido. Carolina fora mantida nua , e à Marina foi dada uma completa obsessão por peles. Então ficavam assim, numa eterna incapacidade de se entenderem. No desejo desesperador de uma e na aversão triste da outra. Como não tinham espelhos, tudo o que sabiam do mundo era a outra. Única visão desde o primeiro instante de existência. E sabiam da voz do homem, que nunca vinha, mas estava sempre lá. Eram iguais, sendo em tudo um oposto. Pelo amor que as unia. Amor dedicado exclusivamente ao dono da voz, que nunca chegava. Ele passava os dias a olhá-las. Brincavam, falavam, liam. Um dia Carolina viu no vestido da irmã um pequeno buraco e vislumbrou ali uma possibilidade. Passaram dias em brincadeiras violentas, que o homem assistia atônito sem entender, tentando fazer com que o buraco aumentasse. E aos poucos ele cresceu. E um dia elas puderam se tocar. Naquele momento a voz perdeu sua criação. Nada mais interessava às pequenas a não ser o toque. O calor, a textura, as pequenas imperfeições, a imensa perfeição. E o homem não as controlava mais. Nem suas histórias que antes as mantinham fascinadas por horas, nem suas regras exaustivamente repetidas. As duas só queriam saber de descobrir a outra descobrindo assim a si mesmas. Se olhavam por horas nos olhos buscando o próprio reflexo. Se tocavam até a exaustão descobrindo suas próprias sensações e passaram a falar de coisas que elas possuíam e nunca tinham percebido. Coisas em comum. Coisas nada em comum. Aí foi que o homem se enfureceu de um ódio que nem ele sabia que tinha. Por dias não falou mais com elas e como elas não demonstraram falta de sua voz ele passou a imaginar uma maneira de se livrar delas. Não podia simplesmente mandá-las embora, posto que eram belas e alguém as acolheria. Ele não suportava a idéia. Passou dias sem olhá-las. Elas e suas descobertas. Uma que bem gostava da torre. Outra que não se acostumava. Temperamentos antagônicos. Nada melhor do que ter no outro o que nos falta. Um dia, não suportando mais a angústia de tê-las não as tendo pois que pertenciam antes de tudo uma à outra, o homem entrou na torre pensando surpreendê-las, que o surpreenderam esperando-o, que já o estavam fazendo há muito tempo. E ele, que sempre sabia de antemão o que iria fazer, foi traído pela mais avassaladora ternura por aquelas que eram seu sonho, sua criação. E tanto se alegraram com o encontro, e tão forte foi o amor dispensado naquela relação que a matéria não aguentou. A dele. E ele as deixou com seu corpo já vazio. Mas na imensa euforia as duas não perceberam e continuaram a descobri-lo até que ele foi deixando de existir e elas o foram esquecendo, condenadas a descoberta eterna uma da outra, em movimentos e sensações que jamais cessariam. Para sempre condenadas a si mesmas.

Tuesday, August 15, 2006

Quando é que você é você e só? Quando a água escorre quente, amolecendo os músculos, esquentando o coração? No quarto escuro? A casa vazia. A música alta para não ouvir os próprios soluços. Quando é que você sorri de verdade, sem a intenção de agradar alguém? Quando o fogo crepita? A água evaporando. O cheiro do tempero. Da carne. Cozido. Quando é que você mostra suas garras? Quando grita sozinho, se jogando contra as paredes, na esperança de que, finalmente, a casa caia? E quando chega o inverno, você admite que seu pêlo cai? E quando surge a primavera, e a pelagem renasce e você percebe que as cicatrizes que você julgava curadas ainda são falhas e que o pêlo ainda não cobre, te impedindo de esquecer, você se decepciona? Quando é que você se trai? Quando percebe que no jogo do abandonar ou ser abandonado você sempre perde. Seja qual for a posição que você ocupe. Sorria. Com todo mundo é igual. Não se pode ganhar. ? Quando é que você admite que o seu impulso de proteger o outro é uma maneira de desarmá-lo? Quando você se rende ao fato de que no fim das contas estava mesmo era preocupado consigo próprio e quando se deu conta, o outro já não estava mais lá? E quando você diz aos berros que já não se importa? E quando é verdade? Quando é que você chora baixinho querendo o colo que você mesmo expulsou? E quando agradece alto por tê-lo expulsado? Porque no fim das contas isso estava mesmo exigindo demais de você. Quando é que você diz que está cansado? E está mesmo? Quando você se repete que já tentou muito? É real? E o que é que você tentou por você? E por mim? Quando é que você acredita no que eu digo? Mesmo no pavor há conforto? Como um sofá que nos assombra, e no entanto... dormimos nele. Dormi com ele e ele segue me assombrando. Quando foi que isso aconteceu? Quanto disso tudo faz diferença? Quanto vai restar? E onde?

Monday, August 14, 2006

Estátua de sal ao sol

Era sem tempo que ela corresse pra sombra! De nada adiantava ficar mais ali, parada, no meio do jardim, esperando por um raio de sol. Ele não se dignava a estar mais de uma vez no mesmo lugar, talvez duas, nunca três. E correr o risco de que alguém lhe dissesse quando vir? Mais um pouco que ela ficasse ali e teria mesmo torrado, seca ao sol. Esturricada de espera. Era uma estátua muda, pelo bom senso, louca de vontade de gritar para que o outro, tão descuidado, de uma indiferença divertida, de brilho nos olhos fosse obrigado a escurecer e mostrar o que esconde tanto. Que ele tivesse de segurá-la, caso contrário, estaria morto e dizer uma única vez o que pensava de verdade, sem a delicadeza aprendida numa cidade distante. Não perder a paciência. Não perder a razão. Tudo resolvido. Calculado. Combinado. Tão parecidos. Um nojo leve de tanta acomodação. Tanto controle. Deixou que as plantas a invadissem. Tão mais fácil fazer parte da paisagem. Inútil dizer que estava cansada, não era verdade. Não era nada de cansaço. Era paciência. Paciência com a dor. Com a ausência. Ela já sabia de antes. Era esperar que passaria. Sempre. Nem borboletas, nem fadas no jardim cinza sem luz. O papel branco esfarelava. As palavras voavam no infinito vácuo, sem resposta. E nem valia a pena a fantasia de que era o medo. Era mesmo coisa nenhuma. A comida esquecida no fogão antes de ser terminada. O gosto amargo antes de azedar. Colocar tudo no lixo. Objetivamente. Porque há muito que protelava. A mesma panela. E dali nada saía. Cada vez que o caldo engrossava ela esperava que ia entornar e que a cozinha seria invadida de um lindo caldo de luz. Mas ele ia aguando... mirrando, sem explicação. Já era um desperdício de ingredientes. Ela ali, sentada, de água na boca... secando... Era de dar raiva. Pra que gastar mais de seu sal? Cada vez ela ficava um pouco menor. Cada vez dava um pouco mais. Insistisse e aquele homem ia acabar com sua vida! Porque era mais que querido, mais que amado, era real. Pálpavel. Era único e necessário. E sabia. Por isso um pouco de abuso, só charme. Porque mesmo a dor era menor que tudo isso e ela jamais o abandonaria. Teria trocado a eternidade se a tivesse... como não a tinha, não trocou nada. Sem prejuízos visíveis. Existem mesmo flores que não suportam o sol. O sal derrete as lesmas. Tem amores que fazem mal, secam, derretem, desperdiçam. Somos todos iguais. Melhor voltar à sombra.

Wednesday, August 09, 2006

Saiu de casa à tarde e foi ao cinema. Sozinha. Pela primeira vez. Não se lembrava de ter estado sozinha antes. Sentou-se para assistir ao filme. Desejava ardentemente que o filme fosse bom. Teria no que pensar. A sessão estava lotada. E ela ali, sozinha. Pensou em falar com a pessoa ao lado. Perguntar as horas, quem sabe. Não conseguiu. A vontade, talvez, não fosse tão grande. Suas vontades nunca eram muito grandes. Nem sequer as tinha em grandes quantidades. Como quase tudo em sua vida, nada em grandes quantidades nem muito forte. Apenas o medo. E agora a solidão. A segunda sessão não estava tão lotada. Não se lembrava se o filme era bom. Esteve tão perdida em seus pensamentos que não chegou a perceber. Aproveitaria essa sessão para se concentrar no filme. Não é para isso que as pessoas vão ao cinema? Não sabia mais para que ela ia aos lugares. Por que saía de casa? Alguém já tinha dito: " Sair de casa é suícidio. Mas ficar também não adianta." Não adiantava. As coisas já não adiantavam. Muito. Nem pouco. A terceira sessão estava quase vazia. Que horas seriam? De novo o filme se fora e ela não percebera. As coisas não podiam permanecer assim. Iam e ela não percebia. Se fossem só os filmes... Achava estranho que não sentisse fome, ouvira alguém comentar que aquele filme era longuíssimo, e já era a terceira sessão. Como podia não sentir fome. Ou sede... A quarta sessão estava vazia. Totalmente vazia. Nem ela estava ali. Não esteve em nenhum lugar, nunca. Só agora sabia. Como se seu corpo andasse separado dela. Ele estava, mas ela... Só agora tinha chegado. Viu que as poltronas eram vermelhas e estavam um tanto velhas. Viu que não havia mais ninguém. Mas a quarta sessão já tinha acabado? Não teria uma quinta? O homem com a lanterna, meio irritado , veio lhe avisar que ela tinha de ir. Ir? Para onde? Para onde vai alguém que está sozinho? Sozinho. Verdadeiramente.

Tuesday, August 08, 2006

Não Entender


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.


Clarice Lispector

Sunday, August 06, 2006

Toupeira e Porco-Espinho

Nasci toupeira. E me entristeço de saber que quando as pessoas querem dizer que alguém é pouco esperto chamam-na toupeira. Pois não é verdade que somos pouco espertas. Trata-se, sim, de um problema de olhos. Não enxergamos bem. Não posso negar. É um jeito meio vesgo de ser, uma maneira hipermetrópica de vida. E aos outros é muito difícil que não vejamos as coisas como eles, então somos, a seus olhos, pouco inteligentes. É verdade que esse olhar meio besta cansa um pouco, e que dá trabalho explicar aos outros minha realidade distorcida. Então resolvi num dia de cansaço me fingir de porco-espinho. Minha mãe logo avisou que não daria certo, que o porco-espinho é um bicho que vive só, não por opção, mas por uma completa inabilidade de lidar com o próximo. Não acreditei, e insisti. Me parecia que me fingir de porco-espinho me pouparia uma série de aborrecimentos. Eles se defendem melhor, são mais rápidos e ninguém abusa muito da sua boa vontade. Foi o que pensei... com meu jeito vesgo de pensar. Segui declarando que sou porco-espinho, e apesar de não ter espinhos os que me cercam acreditam no que eu digo, e até enxergam em mim os espinhos que não tenho. É engraçado, depois são as toupeiras que enxergam mal... Mas ando cansada da fantasia, porque na verdade não passei a enxergar melhor, mas ganhei a inabilidade com o próximo. Então além da vida míope e embaçada agora não consigo dividir. Parece um enorme castigo por eu fingir tanto ser algo que não sou. Também não posso ser injusta... essa inabilidade foi aprendida com muito custo, não posso desprezá-la... é que vi outro dia uma toupeira que finge ser porco-espinho... e achei tão engraçado o esforço que ela faz pra se esquivar, ser forte, não se entregar... que me senti tomada por uma afeição que me desconcertou... há tanto que desaprendi o afeto! E o bobo que me viu como porco-espinho, sendo toupeira, ou o contrário, não estou bem certa, me desarmou, e fiquei assim, meio nua... sem os espinhos que eu já não tinha. E às vezes acho lindo isso de estar sem roupa, às vezes acho odioso. Ainda sou bem inábil pra lidar com qualquer outro. Particularmente com o igual disfarçado de igual, mas diferente. Mas tenho duas imensas alegrias... a de ter essa toupeira com espinhos imaginários perto e a de me redescobrir toupeira, com meu jeito míope de ser, que foge do sol de vez em quando, mas que pode deitar num colo sem espetar. Me falta conseguir dizer ao outro que meus espinhos são miopia... nada mais.