Thursday, July 27, 2006

Triste de feliz

Você já se sentiu assim? Quando a felicidade é tanta, o encontro é tão precioso que dá uma tristeza fininha no estômago? E então vem a dúvida... o que fazer com isso? Com tanta alegria, tanta luz, tanto calor...e com tanto medo. Então volta a vontade de se esconder, o não primordial, aprendido, tão bem conservado. E me deito na cama, coberta até os olhos, bem protegida. Porque já sei ser triste, mas ser feliz é muito doído, uma dor de morte, de tanta vida que de repente me invade, sem pedir licença. Daí surgem as vontades mais estranhas, de que nunca amanheça, de que os braços dele colem ao meu redor e ele não possa mais se mover, de que tudo dure pra sempre e acabe no próximo segundo. Que seus olhos não vejam mais nada a não ser meus olhos. Mas que ele não me veja em minha infinita fragilidade, em meu desejo assustador, em minha imensa imperfeição. A vontade de que ele me ceda um canto em seu peito, pra que eu possa descansar e o mínimo de segurança pra que eu não enlouqueça e uma total insegurança pra que eu enlouqueça... e me deixe muita saudade e muitas lágrimas nos olhos pra eu ter do que me queixar, mas volte rápido, pra que eu não me acostume com as queixas. E me lembre de que a vida é boa... e o céu de um azul estonteante. Que não fique, mas não me deixe jamais. E eis que estou esquisofrênica, e é uma delícia indizível. E tenho gana de gritar que o amo pelas ruas, mas ao mesmo tempo que o mundo seja surdo, para que meu amor não se profane. E peço... encarecidamente que não o desperdice, o meu amor, que ele é bom e quente, e sabe ser calmo apesar da loucura, e sabe ser louco, apesar do controle que finjo possuir. Não o desperdice, que há tanto tempo te pertence e anda tão cansado do seu canto sem luz.

Sunday, July 23, 2006

ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade
o olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes

( ao homem que tem me salvo, por dias e dias, sem se dar conta disso...)

Tuesday, July 18, 2006

Sol

Eu toquei o Sol. Numa noite sem nada de especial, uma dessas noites que nenhum poeta escolheria como inspiração, eu o toquei.
Ele veio assim, como um homem, talvez por tédio, talvez amor... Um homem de cabelos escuros que nada tem em comum comigo. A não ser os olhos. Olhos grandes e tristes. Olhos de um povo há muito tempo perdido.
Colocou suas mãos em mim e me deixou uma marca... não importa. Agora não importa. Ele sussurrava. Sim. O Sol sussurra e é macio. E cheira bem, um cheiro morno que foi me deixando meio tonta. Tem uma força inexplicável. Incompatível com seu tamanho. E uma boca que nada tem de humana pois que é a perfeição. Ficou ali comigo. Uma noite.
Nunca, em tempo algum, fui tão bela como em seus braços.
Então ele se foi. Sem mais. Num segundo. Me deixou uma sensação estranha no ventre. Não é dor. Nem saudade. Nem medo. É algo que ainda não conheço, por isso chamo-a insolação.
Me resta ainda a vontade de gritar aos quatro cantos que toquei o Sol.
E que todo ele é beleza, que o calor que ele proporciona é único. E que cada marca que ganhei naquela noite é prazer e delicadeza.
Eu toquei o Sol. E daria a eternidade ( se eu a tivesse) por isso.

Monday, July 10, 2006

namoro novo

Não há sentido na vida, se tudo termina com a morte. Pensei. Pensei. E sorri.
A vida é cheia de pequenas surpresas preciosas. E momentos únicos. E tanta beleza e alegria...
E tudo isso existe por si só, não por mim. Mas eu lhes atribuo sentidos que só a mim dizem respeito. Então, se tudo perdeu o sentido devo supor que fui eu que o perdi. A culpa é minha. Me perdi.
Os dias continuam passando. O Sol está em seu lugar, a Terra gira ao seu redor, as estações passam, os amigos ligam... tudo igual, girando. Onde o sentido disso? São como os pensamentos que me habitaram ontem à noite e se foram sem razão. Como tudo que se vai sem razão e deixa em seu lugar um silêncio oco. São minhas veias que de repente estão vazias, mas não murchas. É meu corpo, sem sangue nem desejos mas que não está morto. Estou oca e nem por isso mais leve. Nem por isso flutuo. Na verdade peso, e eu e o chão temos vivido uma relação íntima. Frequentemente me encontro colada a ele. Como dois amantes, rostos colados, o corpo que pressiona, entregue, as mãos úmidas. Olho-o tão de perto que posso ver suas imperfeições. É o risco que se corre quando se aproxima demais. Já sei que ele não é tão liso, nem tão frio, nem tão claro quanto parecia. Nem tem uma cor definida... acho que depois de tantas quedas ele também ganhou hematomas. E o sangue. O gosto de sangue na boca que se espatifou no choque, agora já ninguém nota, só se se aproximar demais...mas o gosto ficou.
Talvez seja um truque da memória... ela tem dessas coisas.
Creio que nos tornaremos grandes amigos, eu e o chão. Assim que eu compreender que não importa o que eu faça, ele não poderá me abraçar... E ele se acostumar com minhas lágrimas que correm e o encharcam, inundando suas frestas e o deteriorando lentamente. Aos poucos entendemos que qualquer relação é assim. Não somos diferentes. Ele me diz que já não faço mais barulho, aprendi a chorar em silêncio, é um avanço. Quase não incomodo mais. Sei que ele se alegra com isso. E a alegria fortalece as relações. Ele sabe que me esforço. Temos futuro.

Thursday, July 06, 2006

Estava cozinhando e ouvia a mesma voz que repetia, como sempre, as mesmas palavras. Já sabia que o tom iria aumentando, que as palavras se tornariam mais e mais agressivas. Teve um tempo em que se sentia humilhada, um outro em que se sentia magoada, irritada, agredida, não necessariamente nessa ordem. Depois deixou de sentir. Deixou de ouvir também. Escutava, é claro, que naquele volume ela não tinha alternativa. mas não ouvia. As coisas que ele dizia foram deixando de fazer sentido. Eram apenas sons que ela não decodificava. Mas aquele barulho era de enlouquecer. Como é que ele tinha tanto fôlego? Como podia repetir essa gritaria todos os dias por mais de... ela já não sabia. Não sabia quanto tempo. Não conseguia se lembrar de ter sido diferente. Mas sabia que tinha, apenas havia esquecido. Já não importava. Permanecia ali, cozinhando, quando a faca escorregou e lhe acertou o pulso. No susto, cortou o outro pulso, num reflexo. Foi sem querer. Pensou que andava mesmo distraída. Imagine, se cortar daquela maneira... Pela tontura que sentia devia estar perdendo muito sangue. Percebeu que a gritaria parecia agora mais baixa, como se a cozinha estivesse muito longe do resto da casa e cada vez mais. Pensou que afinal era uma benção que não tivesse filhos, pois agora eles chegariam em casa e não teriam o que jantar. Seria contrangedor, não conseguiu terminar o jantar... sorriu e teve muito sono, a voz cada vez mais longe, mais baixa, estava muito aliviada, enfim silêncio.

Wednesday, July 05, 2006

amor de índia

Sim, eles estavam no paraíso, e vocês me perguntam se eles se amaram.
O que é o amor, o que era o amor? Não ouso responder.
Que eles certamente gostavam de transar um com o outro, que Fernão não procurou outras índias porque isso nem lhe passou pela cabeça, que os dois passavam horas rolando no chão entre as folhas, brincando e gemendo, que Fernão tomava banho no rio puxado por Inaiá, que queria melhorar o cheiro dele, que Inaiá só pensava em levá-lo para o sossego de sua rede, onde pudessem brincar sem as mordidas dos bichos nas folhas, tudo isso aconteceu assim.

É isso o amor? Então, sim, eles se amaram.


(Maria José Silveira)

Tuesday, July 04, 2006

Ela se cortou. Era dia de higiene pessoal, talvez ela não tivesse pensado em se cortar, mas agora parece pouco provável. Andava incomodada consigo mesma, com seu corpo, as sensações que ele trazia, as pessoas a quem ele atraía. Entrou no banheiro com seu material de higiene como fazia toda segunda quarta-feira de todo mês. Começou pelos pés, como sempre, cortou as unhas, lixou, limpou bem os pés, deixou as unhas bem curtas e pintadas com um esmalte bem claro. Não havia pés mais bem feitos. E seguiu depilando as pernas, a virilha, com muito cuidado, chegou ao sexo e sentiu o incômodo chegar a um nível insuportável. Fingiu que não tinha percebido. Seguiu com sua tesourinha, aparando os pêlos que desciam numa estrada fina concentrados apenas no centro de seu sexo. Viu ali aquela coisa pequena como um botão de flor, e tocou-o de leve. Era tão insuportável e doloroso o prazer que ele proporcionava, era tão grosseiro e covarde e burro o homem que despertava aquele prazer. Eram tantas as lágrimas derrubadas antes, durante e depois. A tesoura em suas mãos de repente lhe parecia um instrumento de libertação, de alívio. Poria um fim naquele martírio no momento em que aquela coisa insignificante não estivesse mais em seu corpo. Estaria livre do prazer que a escravizava. E o cortou. Tentou gritar mas não pôde. A dor foi tão lancinante que suas pernas cederam e sua consciência a abandonou. O sangue, o prazer e o homem escorrendo pelo ralo.